Gloria Perez nunca havia assistido a uma
novela inteira quando teve a oportunidade de ajudar Janete Clair (1925-1983),
já doente, a escrever “Eu Prometo”. Aprendeu com ela a admirar o gênero. E
ouviu da rainha do folhetim que tinha uma qualidade fundamental para escrever
novelas: o despudor.
Numa foto do escritório da autora, datada de
2006, vê-se com muita nitidez, em lugar de destaque, uma plaquinha com a frase:
“Só os imbecis têm medo do ridículo. Nelson Rodrigues”. Não sei se ela ainda
conserva o objeto, mas tenho certeza que continua acreditando na mensagem.
Dentro deste contexto – de que novela é
sinônimo de fantasia –, Gloria Perez desenvolveu em suas últimas obras o hábito
de estabelecer a ação sempre em dois planos, no Brasil e em algum recanto
exótico para os brasileiros, como Marrocos ("O Clone") e Índia
("Caminho das Índias").
Além disso, acrescentou aos seus folhetins a
preocupação em discutir temas reais, de grande apelo midiático, como doação de
órgãos ("De Corpo e Alma") ou crianças desaparecidas ("Explode
Coração"). As chamadas ações de responsabilidade social que introduziu em
suas tramas deram às novelas um caráter jornalístico, que se contrapõe ao da
fantasia.
Conscientemente, ou não, Gloria Perez criou
uma forma de bolo, capaz de fazer com que a assinatura de suas novelas seja
imediatamente reconhecida. No caso de “Salve Jorge”, que estreou há uma semana,
a ação se passa entre o Rio e a Turquia, mostra a “pacificação” do Complexo do
Alemão e trata do tráfico internacional de mulheres em Madri.
Obviamente, há mais, muito mais, na novela.
Quase um romance de capa e espada, a trama opõe militares brigando por causa de
mulheres e cavalos. Tem também vários conflitos entre ricos, além de disputas
entre pobres, entre outros clichês obrigatórios.
Têm, ainda, beijos apaixonados sob a chuva,
gente misturando português com turco na Capadócia, personagem dando um pulo em
Istambul e voltando para o Rio no mesmo capítulo e Irina, uma russa com a cara
da Vera Fischer, falando português em Madri. São quase 100 personagens, lutando
por espaço na imaginação da autora.
O despudor que aproxima Janete Clair, Nelson
Rodrigues (1912-1980) e Gloria Perez é o de não ter receio de tornar reais as
mais absurdas fantasias humanas. “Todos nós precisamos sonhar. Sonhar faz parte
das necessidades humanas. Se a novela cumpre essa função, já faz o seu papel”,
resumiu a autora numa entrevista ao projeto "Memória Globo".
Gloria Perez segue acreditando com convicção
na força do modelo que aprimorou – os primeiros sete capítulos mostram que está
tudo lá. Também acredito na força do novelão, mas não é possível ignorar que,
imediatamente depois de “Avenida Brasil”, que propôs uma sutil adaptação desta
receita, muito mais ágil, com menos tramas e personagens, “Salve Jorge” parece
pesada, com excesso de paramentos.
Ao longo dos próximos meses veremos se esta
“assinatura” da autora, hoje tão facilmente reconhecível, é uma qualidade ou um
defeito.
Fonte: Mauricio Stycer, do UOL
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