O advogado pernambucano Marcelino Quirino, de 42 anos, publicou o texto abaixo no perfil do Facebook do colunista de TV Maurício Stycer, do UOL. Grande noveleiro (“costumo dizer que fui criado vendo novela nos anos 80”, diz), ele autorizou o colunista a republicar o seu comentário. Com muita lucidez, Quirino explica algumas questões que têm levantado dúvidas em espectadores de “Velho Chico”. Confira:
Personagens vivem em 2016, mas têm a cabeça no século 19
Muito tem se falado da discrepância do modo de vida, inclusas as roupas e objetos de cena, da fazenda do Coronel Saruê com o tempo em que a estória se passa. Para mim está tudo tão claro e lógico. A narrativa se passa nos dias de hoje, mas o estilo de vida da fazenda quer nos mostrar que para aquelas pessoas da casa grande o tempo não passou, a mentalidade deles é da época dos escravos.
São pessoas com o pensamento arcaico, já fora da realidade, apesar de contar com alguns elementos da modernidade, como por exemplo computador. A matriarca Encarnação (Selma Egrei) é o melhor exemplo disso, da maneira como se veste ao trato com os seus empregados. É um povo parado no tempo.
Outro caso a parte é a caracterização do Coronel Saruê (Antonio Fagundes), que para mim também está em total sintonia com a proposta da novela. A diferença é gritante entre a caracterização inicial para a atualidade justamente para mostrar que aquele rapaz do começo da estória mudou tanto, a ponto de ficar irreconhecível.
Não existe mais qualquer indício daquele jovem boêmio do primeiro capitulo, tão bem interpretado por Rodrigo Santoro. O que existe agora é um senhor feudal, debochado, enorme de gordo, de uma vaidade em nível tão elevado ao ponto de se tornar ridículo. Eu pelos menos vi vários deles na votação do impeachment.
Não resta dúvida que essa novela tem um diferencial. Tudo que é colocado na tela tem uma razão para estar ali. Querem ver um exemplo: por que Dona Piedade (Zezita Matos), a mãe de Santo dos Anjos (Domingos Montagner), foi enfrentar o Coronel com uma colher de pau?
Porque a única arma que ela tem é o poder de ser mãe e dona de casa, cuidadora da sua prole, e não existe representação melhor para isto que a colher de pau que ela estava usando para fazer o jantar na hora do tiroteio na fazenda Piatã. Prova que ela conseguiu convencer Dona Encarnação quando falou do filho que ela perdeu.
Na verdade as pessoas deviam assistir a novela com muita atenção, e se perguntando o que esta cena quer dizer, o que este ambiente fala sobre essas pessoas, o que esses objetos e roupas significam para os personagem que os usam.
Em nenhum momento vejo as pessoas comentarem o por quê de tal personagem agir assim, a personalidade de cada um. Não vejo resenhas na internet destacar a beleza de uma cena, ou o enredo político sempre presente nos diálogos, ou ainda como veio à tona uma série de emoções ao ouvir uma das maravilhosas músicas da trilha sonora.
Tudo que está ali, quem conhece o interior do Nordeste, está perfeitamente caracterizado, e o que é “exagero'' serve para chamar nossas atenções, não por ser erro ou falta de conhecimento de nossa realidade, mas para criticarmos o modo de vida atrasado pelo qual inúmeras pessoas ainda vivem, exploradas pelo poder dos Coronéis Saruês espalhados por aí.
Torço muito para que a novela não seja descaracterizada, e que o telespectador deixe de preguiça e interprete o que está sendo apresentado. Temos que nos acostumar a assistir a novela e não apenas ver.
Fonte: UOL
Nenhum comentário:
Postar um comentário