Hedonista, cruel, dona de um apetite sexual
pantagruélico e amoral, a Beatriz de “Babilônia” foi uma missão oferecida por
Gilberto Braga a Gloria Pires e aceita sem perguntas. Quando ela ainda estava
gravando o remake de “Guerra dos sexos”, em 2012, recebeu um telefonema do
autor perguntando se toparia fazer sua próxima novela. Explicou que ainda
estava criando a história, queria reservá-la, e só. Como tem uma lista de
bem-sucedidas parcerias com ele, ela disse sim instantaneamente. A primeira
delas, a Marisa de “Dancin’ days”, um estouro de 1978 recentemente reprisado no
Canal Viva com ótimos índices de audiência. Outra, inesquecível, foi a Maria de
Fátima de “Vale tudo” (1988), a filha mais ingrata que o telespectador já viu
nas telenovelas brasileiras. Com esses sólidos avais, a atriz sabia das
garantias da proposta mesmo sem conhecer os detalhes.
— Meses mais tarde, ele me ligou, contando
que faria duas vilãs. Só bem depois, quando recebi a sinopse, entendi a
incrível oportunidade que estava recebendo e senti medo. Tive a percepção de
que era algo realmente novo — conta Gloria.
A ênfase no “realmente novo” se explica. Em
novelas desde os 5 anos — quando participou de “A pequena órfã” na Excelsior —,
Gloria fez de tudo na TV. Diferentemente de muitos de seus pares, que costumam
ver no teatro a verdadeira atividade nobre para um ator, ela se manteve longe dos
palcos. E tornou-se mestre diante das câmeras. Hoje, aos 51 anos, é lembrada
por uma ampla paleta de emoções desempenhada com equivalente domínio. Ela foi a
mocinha romântica de “Cabocla” (1979) e a divertida vigarista Sarita de “Mico
preto” (1990). Mais tarde, Ruth e Raquel, as gêmeas boa e má de “Mulheres de
areia” (1993), e a traiçoeira babá Nice de “Anjo mau” (1997). Das adaptações da
literatura, interpretou Ana Terra de “O tempo e o vento” (1985) e foi
protagonista de “Memorial de Maria Moura” (1994). Um vasto repertório. Está
sempre no ar em alguma reprise. No momento, em “O Rei do Gado”. Não existe a
televisão brasileira sem ela e vice-versa.
Ainda assim, Beatriz trouxe conexões
surpreendentes. Nenhuma das figuras desse currículo é tão livre de freios, tão
multipolar e descarada como essa. Daí o medo que a atriz diz ter sentido.
— Ela é uma personagem muito rica, no sentido
de que pode tudo, ou acha que pode — analisa Gloria. — É totalmente
imprevisível, cheia de energia, leviana. Muito inconsequente em alguns momentos
e age como se não houvesse amanhã. É a verdadeira expressão da frase carpe
diem. Busca o próprio prazer, gosta do perigo.
Gilberto, para quem Gloria é Glorinha e que
escreve “Babilônia” com Ricardo Linhares e João Ximenes Braga, nunca teve
dúvidas do bom resultado:
— Ela é mais do que uma grande atriz, é um
fenômeno. A novidade maior, acho, é que ela esteja fazendo um papel de mulher
sexy, isso ela nunca tinha feito. Está arrebentando. Mais do que nunca, eu sei
que a cena que vier ela traça.
Dennis Carvalho, que a dirigiu em “Dancin’
days”, “Vale tudo” e está à frente de “Babilônia”, observa que a atriz é
“minimalista, vai nos detalhes”. E criativa:
— Ela nunca faz igual. No ensaio, se comporta
de um jeito, na cena, de outro. É intuitiva. Sem dizer que é uma colega
espetacular. Fora o clima entre ela e Adriana Esteves, uma alegria só.
Sobre a parceria com Adriana, sua inimiga na
ficção, Gloria explica que aquilo que é agressivo no ar, nos bastidores se
desenrola justamente ao contrário:
— Há uma curtição em estudar as cenas,
trabalhando detalhes. Mesmo em dias pesados, rende boas gargalhadas.
Se, como diz Gilberto, Gloria “traça tudo”,
ela tem lá suas reservas e temores quando fala de cenas fortes na novela.
— Sei que as tintas certas serão usadas,
afinal, é uma trama do Gilberto. A TV entra na casa das pessoas, na minha casa,
eu tenho filhos e penso nisso — diz a atriz, referindo-se a Cleo, de 32 anos,
Antônia, de 22, Ana, de 15, e, principalmente, a Bento, de 10.
O caçula dorme cedo e não tem permissão para
acompanhar “Babilônia”. Quando a mãe estava no ar em “Insensato coração”, em
2011, Bento viu o penúltimo capítulo, em que a personagem dela, Norma, morria
assassinada com um tiro. A experiência foi ruim.
— Não dou força para ele ver novela. Ele
assistiu contra a minha vontade, junto com as irmãs que estavam loucas para
ver, e ficou muito chocado, foi horrível. Por mais que eu explicasse tudo em
detalhes, que aquilo era sangue cenográfico, que ficava numa bolsinha sob o
figurino, não adiantou. Era a mãe dele levando um tiro — lembra.
Aos 8 anos, Gloria Pires
participou da novela 'Selva de pedra'
Casada há 26 anos com o músico Orlando
Morais, a atriz se diz “mãezona”, embora “uma mãe possível”. Ela se refere à
dedicação profissional que ocupa grande parte do seu tempo. Atualmente, grava
de segunda a sábado, em ritmo intenso, já que Beatriz é uma das principais
personagens da novela.
— Minha vida sempre foi assim. Sou presente e
muito coruja, mas não tenho como me dedicar 100% a eles. Eles sabem disso e
está tudo certo. Sinto necessidade de estar com a minha família. É uma espécie
de alimento indispensável para que eu fique bem — resume. — Preservo a minha
intimidade e evito exibir minha família, mas também não me escondo. Minha vida
tem isso da alta exposição, é um dado. Quando temos que ir a algum lugar
público, vamos numa boa.
No dia a dia, ela é acompanhada de perto por
Antônio Padilha, seu assistente há 23 anos. Foi ele quem a cercou de cuidados
durante essa entrevista, que aconteceu num clube na Barra da Tijuca depois da
gravação em que acontecia uma festa. Padilha trouxe água, perguntou “precisa de
mais alguma coisa?” e esperou a sessão de fotos para seguir com ela para casa.
— Até o texto a gente bate — orgulha-se ele.
O texto, aliás, exige da atriz um momento de
isolamento. Para isso, ela também desenvolveu uma rotina. Assim que recebe os
capítulos, “dá uma lida pra entender”. Só depois, estuda e decora as falas. Diz
que “não é tão difícil como parece”, graças a algo que aprendeu com o pai, o
humorista Antônio Carlos Pires:
— Eu era criança e estava com medo de
esquecer o texto na cena. Meu pai me acalmou. Disse assim: “Não se preocupa em
decorar. Pensa em entender.’’ Levei isso pra minha vida.
Essa compreensão do texto levada ao seu
paroxismo é que permite que ela “embarque em qualquer personagem”. No caso de
“Babilônia”, afirma, a entrega é facilitada pelas características da vilã,
cruel e intensa:
— Nunca sei aonde ela pode ir. Beatriz não
tem limites. É divertida demais. Digo isso porque faço com humor, com uma dose
de deboche que considero fundamental.
Beatriz vem sendo comparada a Maria de
Fátima. Como a personagem de 1988, é má e tem a língua afiada. E faz, de novo,
par com Cássio Gabus Mendes. Mas Gloria ri quando confrontada com essa
pergunta.
— A Fátima não tinha nem metade da esperteza
da Beatriz. Era ambiciosa, cheia de caraminholas na cabeça, audaciosa e
naturalmente malandra. Mas uma garota. Agora estou interpretando uma mulher que
sabe tudo da vida, é muito diferente.
A atriz diz que não carrega características
de uma personagem para outra, “embora todas sejam resultado de uma colagem de
gente conhecida”:
— Observo muito as pessoas e uso isso em
cena. Já fiz muita coisa em novelas, mas sempre é diferente. Cada momento é um,
o prisma muda.
O trabalho em “Babilônia” também é motivo de
muitos elogios do público à boa forma da cinquentona atriz. Ela diz que
“demorou a gostar de se ver na televisão”, mas isso passou. Assim que a novela
estreou, há menos de um mês, a Central de Atendimento ao Telespectador (CAT) da
Globo explodiu com ligações de espectadoras querendo saber onde comprar os
figurinos que ela usa, qual a cor da tintura de cabelo e até dos esmaltes.
Gloria não escorrega para a falsa modéstia ao comentar a admiração geral:
— Me cuido muito. Sabe aquela promessa que as
pessoas fazem, de véspera de Ano Novo, de que vão se cuidar? Então, eu levei
isso a sério há uns 20 anos. Dedico um tempo a mim. Faço ginástica com um
treinador, na academia, e não falto — conta ela, apoiando o braço bem torneado
sobre a cadeira enquanto gesticula.
Ela controla o peso às custas de uma “dieta
permanente” e com a ajuda do nutrólogo João Curvo, além de obedecer aos
conselhos de um ortomolecular e “gostar muito de medicina chinesa”. Seguindo
essa orientação, toma pílulas de vitaminas diariamente, mas ressalva que “não
quer fazer propaganda disso, algo pessoal” e reforça que não usa hormônios do
crescimento, ou outras poções ditas milagrosas para a eterna juventude. Perguntada
se já fez plástica, acena negativamente. Se ver bonita na televisão pode ser um
prazer, mas Gloria assegura que não é algo determinante:
— No caso da Norma de “Insensato coração” era
tudo ao contrário. Enquanto ela esteve presa, eu não usava um pingo de
maquiagem e tudo bem. Só tenho ódio da tecnologia HD, que mostra todos os
defeitos da gente.
Quando ouve que há reclamações sobre as
maldades de Beatriz, recomenda a leitura do jornal:
— A realidade tem coisa muito pior. O que
importa é uma boa trama que leve as pessoas a grudarem na TV e a discutirem o
que está errado. “Babilônia” fez isso desde o início.
Fonte: Patrícia Kogut
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