sábado, 31 de julho de 2010

A novela que o telespectador não quer ver


A novela é o produto de maior sucesso da televisão brasileira. Não apenas comercialmente, por ser vendida para dezenas de países e dublada em idiomas tão diferentes do português, como o russo e o chinês. A verdadeira força da novela é revelada na influência sobre o comportamento dos brasileiros.

Um dos segredos desse sucesso está na combinação entre ficção e realidade. Ao abrir mão da fantasia e incorporar situações contemporâneas ao seu enredo, a novela brasileira cria uma enorme relação de intimidade com o telespectador. Diante da televisão, ele identifica seu cotidiano.

Porém, o dia-a-dia da novela não é exatamente real. Os autores sabem captar comportamentos presentes na sociedade e retratá-los após um filtro moral. Daí vem a satisfação do telespectador. Atitudes condenáveis e muitas vezes comuns a milhões de brasileiros são deslocadas para os vilões da história. Apenas eles buscam as mais diferentes maneiras de fraudar. A falta de ética geralmente é comum apenas aos mais ricos. O sexo pelo prazer está longe dos casais apaixonados.

Este filtro moral dá segurança ao telespectador. Após um duro dia em que conviveu com o transporte público de má qualidade e a rotina massacrante do mercado de trabalho, entre outros problemas, ele pode chegar em casa e passar seu tempo observando a vida que idealizou. Durante uma hora, finalmente uma trégua dos problemas.

Mesmo ciente deste comportamento conservador do telespectador brasileiro, fico impressionado com algumas reações. Alguns comentários no texto “Passione e a crise da televisão” causam espanto ao mostrar que parte da população prefere fechar os olhos a enxergar a realidade, mesmo que ela seja fabricada por uma emissora de televisão.

A trama de Silvio de Abreu é acusada de apostar na maldade e na falta de moral. Parte da audiência acha um absurdo que temas como aborto, drogas e infidelidade sejam retratados. Fico me perguntando que conceitos de maldade e falta de moral têm essas pessoas que preferem ignorar situações que existem e que, em muitas vezes, até protagonizam.

Não é nada pessoal. Não me leve a mal se você comentou algo neste sentido. Apenas reflita: nunca em sua vida cometeu uma pequena transgressão? Violou alguma norma ou até mesmo a lei para fugir de uma situação ou encontrar prazer? Impossível. Não há ninguém que viva apenas de acordo com as regras. Se assim fosse, este seria outro país.

Não estou ratificando a desonestidade, a exploração de menores e outros temas que andam causando polêmica. Tomo como exemplo Fátima (Bianca Bin). Um aborto sem qualquer suporte médico gera graves consequências físicas e psicológicas, não uma garota rapidamente restabelecida. Devo me preocupar em condenar a presença do tema em “Passione” ou discutir os problemas da prática?

A novela não deve se abster de tratar nenhum assunto. Que continue assim, mesmo com os problemas de verossimilhança causados pelo filtro moral dos autores. Torço para que os telespectadores deixem o comportamento reacionário de lado. Quem sabe, assim, temas ainda proibidos virem debate e reflexão, não motivo de repulsa.

Fonte: Ale Rocha - Yahoo

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