Mesmo tentando se aposentar há mais de um mês, a culinarista cumpre agenda de celebridade e não para de receber convites.
Como acontece com a madeleine de Marcel Proust, quando Palmirinha prova uma garfada da rabada feita pela filha, ela fecha os olhos, sente o gosto da comida da mãe e se vê transportada à fazenda de sua infância.
Estamos nos anos 1930, em um pequeno sítio próximo a Bauru, tão próximo que hoje está encravado no meio da cidade. Palmirinha tem cinco anos de idade, nunca viu um refrigerante antes, mas entende tudo da horta da família. O pai, Felipe Nery, baiano dedicado, cuida de tudo, do feijão, do milho, da cebola, do tomate caqui, "aquele bem grandão", das saladas todas, dos grãos e dos temperos variados.
O Felipe também cuida da criação de porcos, de galinhas e das duas vacas, que dão leite suficiente para que a mãe, Anna Zambulim, italiana bravíssima, faça o queijo e a manteiga consumidos pela família.
Palmirinha é a terceira filha e lembra como se fosse hoje que a única coisa que eles compravam na cidade era a farinha de trigo.
Aí a Anna fazia o pão no forno de barro com um fermento muito bom, mas cuja receita se perdeu nesses mais de 70 anos.
BANHA
Aos cinco anos, a pequena Palmira precisa subir no banquinho para mexer a colher de pau nas panelas e não deixar a comida queimar no fogão a lenha. Hoje o Felipe quer galinha ao molho pardo, então ele mesmo vai lá e torce o pescoço do frango para que a Anna passe a faca e recolha o sangue necessário para o cozido.
Mas quando é preciso eliminar porco ou vaca, ele chama o matador. Enquanto o especialista faz seu trabalho, o Felipe cava um buraco no quintal. Mas não é para enterrar o bicho.
A Anna derrete a banha no fogo e enche algumas latas de biscoito. Dentro de cada lata, ela coloca partes do porco cru, o lombo, a costela, o pernil. Tampam as latas, colocam no buraco e cobrem de terra. E está pronta a "geladeira" rural dos anos 30.
A lata fica semanas debaixo da terra e, quando é aberta, a carne está tão fresca como se tivesse acabado de matar, não é mesmo, Palmirinha? "É sim, amiguinho. Como se tivesse acabado de matar o porquinho."
Mas a história que a Palmirinha mais gosta da fazenda é a do Felipe Nery indo comprar farinha na cidade. Vai ele na carroça e o cavalo Amparo puxando. Depois da compra, o Felipe sempre toma umas pingas e acaba deitado na carroça, dormindo, do lado de fora da venda.
E aí o Amparo assume uma inteligência estilo da do burrinho pedrês, do Guimarães Rosa, e volta certinho, desviando dos buracos, virando à direita na bifurcação, à esquerda e à esquerda de novo.
Ao chegar na casa de madeira, lamparinas todas já apagadas, o cavalo branco ainda raspa o casco na porta para avisar a Anna que o Felipe está lá, ronc, ronc, só esperando para ser colocado na cama. Esse Amparo só faltava falar, amiguinho.
Pouco depois, aos seis ou sete anos, Palmirinha mudou para a cidade, mas nada muito longe, Bauru mesmo, porque o Felipe cansou da roça e achou por bem abrir um hotel, o hotel São Paulo.
A maior novidade era que lá tinha geladeira mesmo, se bem que não era elétrica nem nada, era um caixote de madeira pintado de branco por fora e com metal por dentro, em que se colocava uma barra de gelo que durava dois dias. Mas o Felipe recheava um saco de estopa com pó de serra, colocava a barra dentro e assim o gelo durava quase uma semana.
O Felipe tinha uma ideia muito própria sobre a educação da Palmirinha: não queria que ela estudasse porque senão ela ia ficar escrevendo cartas para namorado. Mas quando uma francesa amiga da família pediu para levar a menina para São Paulo, porque ela precisava de uma dama de companhia, o Felipe achou uma boa ideia.
E em São Paulo, início dos anos 40, ela aprendeu muito: a atender telefone, a andar de bonde, a entrar na fila da carne --racionada por causa da guerra na Europa-- e a fazer seu primeiro doce, pudim de leite condensado.
O caso é que a Georgette cozinhava pra burro e foi logo ensinando o forno e fogão, como creme bechamel com espinafre, ulalá.
E esse é o segredo da Palmira: comida italiana da mamma, doces e molhos diretos de Paris e aquela simpatia de vovó do interior. Uma mistura nada indigesta, não é, amiguinho?
Fonte: Folha Ilustrada
Nenhum comentário:
Postar um comentário