cena 1 – casa de TIETA/quarto de Tieta/interior/dia.
Perpétua para, de olhos arregalados, incrédula. Instantes. Tieta e Cardo, perplexos, tentam se recompor, se entreolhando assustados.
PERPÉTUA — (erguendo a mão ao céu) Santana do Agreste, minha Virgem Santíssima! Eu não posso acreditar que a Senhora me deixou viver o suficiente pra ver uma indecência dessas! Eu preferia estar mortinha e enterrada a ter que presenciar essa visão de Sodoma e Gomorra! Dessazinha aí, a que se diz minha irmã, eu sempre soube que podia esperar qualquer coisa. Quenga é sempre quenga! Não muda nunca! Mas tu, Cardo... Meu filhinho, que eu criei com tanto zelo e carinho, pra ser um sacerdote, um mensageiro de Deus, pra me ajudar a combater a devassidão que ronda essa cidade... Você não podia ter cravado essa estaca no peito de sua mãe...
TIETA — Perpétua, minha irmã, está mais do que na hora/
PERPÉTUA — (corta, irada) Eu devia era lhes descer o porrete, como fez Jesus com os invasores do templo, e lhes escorraçar daqui como dois cachorros sarnentos, mas eu não vou fazer isso não... Eu vou fazer melhor: eu vou chamar a cidade inteira e vou contar pra todo mundo o pecado de vocês. Quem sabe eles não lhes apedrejem como fizeram com aquela quenga lá da Sagrada Escritura? É... Eu vou fazer isso mesmo! (com ênfase) E é já!
Nesse instante Perpétua se vira abruptamente para sair do quarto, bate com a cabeça na porta e cai desacordada. Tieta corre para socorrê-la, enquanto Cardo, só de cueca samba-canção, se apressa em vestir as roupas.
TIETA — Perpétua, sua doida! Fale comigo, minha irmã... (dando tapinhas na cara) Tá vendo? É isso que dá sair desarvorada feito uma cabrita no cio! Acorde, Perpétua, acorde, mulher!
Instantes. Perpétua abre o olho lentamente, um, depois o outro e então se assusta, como se não reconhecesse o lugar onde está.
PERPÉTUA — Tieta?! Que lugar é esse? O que eu tô fazendo aqui?
Percebendo o estado de confusão de Perpétua, Tieta acena para que Cardo abaixe atrás da cama e se esconda.
TIETA — Calma, minha irmã... Você em meu quarto... Deitada em meus braços... (intrigada) Tu não se lembra de nada?
PERPÉTUA — (pensativa por instantes) A última coisa que me lembro é de ter recostado na cama, depois de ter comido uma porção das boas de buchada de bode...
TIETA — (incrédula) E como veio parar aqui, criatura de Deus?
PERPÉTUA — (convicta) Sonambulismo! É isso! Seu Bento da Farmácia disse que é esse o nome da minha doença.
TIETA — (ainda
PERPÉTUA — Nada! Nadica de nada! Tenho cara de quem lembra?
TIETA — Então venha. Vou lhe levar pra casa. Você bateu com a cabeça e logo logo o galo deve cantar em sua testa...
Tieta levanta Perpétua, a ampara e as duas saem do quarto. Bate a porta.
CORTA PARA PRÓXIMA CENA...
CONSIDERAÇÕES:
O Desafio: “Perpétua flagra a irmã e o filho seminarista nus na cama, fim de capítulo. E, no capítulo seguinte, ela dá um jeito de fingir que não viu aquilo, do modo mais criativo possível... Mas sem ficar cega.”
A solução: Perpétua finge que está em plena crise de sonambulismo.
Num primeiro instante ela fica realmente transtornada com o que vê, mas logo percebe que não pode ser intempestiva, como de costume, pois precisa tirar um melhor proveito da situação. Nos instantes em que fica imóvel, chocada, ela tem um lampejo de memória, que lhe diz exatamente como se safar da situação. Daí em diante passa a preparar o terreno para agir no momento certo, tornando sua atitude o mais crível possível. Por outro lado, não pode deixar de extravasar toda a sua revolta com o fato em si. E enquanto pensa, aproveita para externar a sua raiva se valendo de ameaças e do seu discurso moralista.
Em princípio Tieta e Cardo não esboçam reação alguma, porque a situação lhes é totalmente desfavorável. E qualquer palavra só serviria para fomentar ainda mais a ira de Perpétua. Porém, diante de tantas ofensas, Tieta, que também tem sangue quente, resolve partir para o ataque e assumir de vez o romance. Mas Perpétua sequer a deixa concluir a primeira frase. Por fim, no momento em que percebe o “estado de confusão” da irmã, perspicaz como é, Tieta rapidamente manda que Cardo se esconda embaixo da cama, pois, em se tratando de Perpétua, nem tudo é o que parece. Ela vê, nesse instante, uma remota chance de o casal se livrar do penoso flagrante. Passado o episódio, a dúvida se instala na cabeça de ambos: Perpétua realmente teria visto os dois? Não teria visto? Estaria fingindo? Como agir de agora em diante?
Para o telespectador fica reservada a surpresa e a dúvida. As mesmas dúvidas de Tieta e Cardo. No momento em que a beata flagra o casal na cama, nada mais se pode esperar dela do que um ataque de fúria. E é isso que vai se desenhando ao longo da cena. Com invocações ao sagrado e ao profano, ela faz o seu terrorismo psicológico, fazendo com que todos esperem pelo pior: o apedrejamento em praça pública. E quando isso parece ser inevitável, eis que ela surpreende a todos: bate a cabeça e cai desacordada. Repentinamente se esquece de tudo e não sabe sequer onde está. Foi vítima de mais uma de suas crises de sonambulismo, que até então eram um segredo compartilhado apenas com seu Bento da Farmácia, o “médico” de Santana do Agreste. Para reforçar a sua tese, ela ainda põe a culpa do atribulado sono em uma farta porção de buchada de bode.
Minha solução foi essa...
Considerando o limite das 50 linhas, exigidos para a cena teste, evitei utilizar muitas rubricas, principalmente as técnicas, haja vista que a cena acontece quando a novela já está em estágio avançado e cuja equipe já tem todo um método de trabalho. Concentrei apenas em desenvolver a cena como um todo. Em outra circunstância, poderia explorar de forma mais proveitosa as falas e atitudes de cada um dos personagens. Uma cena rica como essa poderia se desdobrar em várias outras...