Aos 85 anos, Benedito Ruy Barbosa está prestes a colocar o ponto final em mais uma novela de sucesso. Como ele conta, falta apenas escrever o capítulo final de “Velho Chico” e arrumar alguns detalhes de capítulos já escritos.
Por conta das consequências de um AVC (acidente vascular cerebral), sofrido já há alguns anos, o veterano autor desenvolveu um novo método de trabalho, em parceria com a filha, Edmara, e o neto, Bruno, ao longo de “Velho Chico”. Na qualidade de supervisor da história que criou, lia os capítulos, sugeria mudanças e, eventualmente, ditava cenas.
Nesta entrevista exclusiva ao UOL, Benedito descreve o processo de produção da novela e faz algumas revelações inéditas. Ele conta que só concordou em levar o trabalho adiante com a condição de que Silvio de Abreu (imagem ao lado), diretor de Dramaturgia da Globo, não desse qualquer palpite no trabalho. Ignorando a hierarquia, o autor tratou diretamente de “Velho Chico” apenas com Carlos Henrique Schroder, o diretor-geral da emissora.
Benedito conta, ainda, as razões que levaram ao desentendimento com Abreu – a rejeição de uma outra sinopse, para uma novela das 18h, chamada “E Se Ele Voltar”.
Também fala sobre os motivos que causaram o afastamento de sua filha, Edmara, da equipe de redação de “Velho Chico” e das pequenas mudanças que fez na novela ao longo do percurso. Abaixo, em tópicos, os principais trechos da conversa:
Reta final de “Velho Chico” - Só falta escrever o último capítulo. Mas ainda vamos fazer mudanças em capítulos da reta final já escritos. Devemos mudar para ficar mais consistente. Não gosto de novela que termina e o público se sente frustrado. Sempre digo: novela começa a terminar um mês antes, para que termine certo e não fique tudo para o último capítulo. Senão você não entende nada. Fica ruim.
A ideia da novela - Faz muito tempo que estive no rio São Francisco. Corri o rio de ponta a ponta em 1969. Naquele tempo o rio não estava tão judiado quanto está hoje. Viajei com aquelas “gaiolas” maravilhosas, visitei as cidades em volta… Era jornalista, não autor de novelas. Mas sempre ficou na cabeça o desejo de fazer alguma coisa ali, mostrar aquela gente, aquelas cidades ribeirinhas, aquela luta terrível. Uma região rica e ao mesmo tempo difícil de viver. Hoje é muito melhor em relação ao que era. Em compensação, estão matando o rio. O que está acontecendo com o rio, a novela está mostrando.
A sinopse - Eu fiz a sinopse e entreguei dois anos atrás. A Globo aprovou. Na época não tinha ainda o Silvio de Abreu como diretor de Teledramaturgia. Na ocasião, decidiram que a novela seria para o horário das 21h, para a gente ficar mais solto, política e socialmente falando. Houve gente palpitando lá dentro que seria melhor a Globo colocar às 18h. Mas sempre pretendi que fosse uma novela das 21h.
Objetivo - Sempre tenho a preocupação de transformar a novela num produto que seja mais útil à população. Que tenha alguma coisa para a pessoa aprender, discutir, enfim.
Acordo com a direção - Pedi ao (Carlos Henrique) Schroder (diretor-geral da Globo - foto acima), de quem sou amigo e aprendi a admirar, para que não deixasse, de forma alguma, o Silvio de Abreu ter qualquer ingerência na novela. Eu faria a novela das 21h com a minha filha, Edmara, e o meu neto, Bruno, porque não estou mais em condições de ficar 12 horas, 14 horas no computador em função do AVC que tive. Já estou recuperado, mas ainda preciso me cuidar. O acordo foi: quem vai palpitar na novela serei eu, na qualidade de supervisor, o Luiz Fernando (Carvalho), na qualidade de diretor, o Bruno e a Edmara. E isso foi respeitado totalmente.
Palpites - Em nenhum momento, jamais, em tempo algum, a Globo deu qualquer palpite. Tentaram palpitar, mas eu cortei e pronto. Não deixei. Tenho 50 anos de televisão e aprendi. A pessoa dá palpite e, se der certo, foi ela que deu; se der errado, a culpa é sua. Aprendi isso no tempo do Cassiano Gabus Mendes, no tempo do Boni. Trabalhei com todo mundo, em todas as emissoras. Eu jantei com o Schroder, em São Paulo, e discutimos muito a novela. E almocei três ou quatro vezes, na Globo, em São Paulo, com ele. E nunca, jamais, ele falou: “Olha, muda isso, muda aquilo.” Mesmo mexendo com política, que a gente fala coisas pesadas, até.
Atualidade do tema - O povo precisa saber. É o que está acontecendo. Já acontecia há 100 anos, mas é atualíssimo. O Nordeste eu conheci bem. Porque eu não sou daqueles autores que quando termina uma novela vai para a Europa ou para os Estados Unidos. Eu vou para o interior do Brasil. E posso dizer que conheço bastante. Não conheço tudo porque é muito grande.
Autores são colegas - A gente precisa trabalhar num ambiente cordial, gostoso. Nós, autores, devemos sempre torcer pelas novelas da casa. Porque é a casa que nos paga. Então, é bobagem eu ficar criticando a novela das 18h, detonando a novela das 19h. Isso é uma canalhice! Isso é uma estupidez! A gente tem que estar sempre torcendo pelos companheiros. E a Globo tem belos autores, alguns parados, estão descansando, talvez. Gilberto Braga (foto acima) é um belíssimo autor, o Aguinaldo Silva também é um belo autor. A gente pode, às vezes, discutir sobre certos assuntos, não concordar com isso ou aquilo, mas eu considero ambos bons autores. A Gloria Perez também é uma belíssima autora. O Walter Negrão, que está voltando agora, é outro. É gente que traz uma experiência que não se tem hoje em dia.
Currículo - Eu já fiz 50 anos de televisão. Faço novela desde 1966. Jamais uma sinopse minha foi recusada. Pelo contrário. Fiz “Pantanal” na Manchete depois de tentar de tudo para fazer na Globo. E a Globo tentou fazer, mas deu azar de chegar no Pantanal com a equipe em plena cheia pantaneira. Não dava. Larguei 25 anos de Globo e fui para a Manchete. A outra novela minha também aprovada, mas que a Globo deixou na gaveta para fazer quando tivesse necessidade, foi “Os Imigrantes”. Cansei de esperar e fui fazer na Band. E foi um sucesso. Fiz também duas novelas na Record, “Algemas de Ouro” e “A Última Testemunha”. E na falecida Excelsior, fui supervisor de “O Tempo e o Vento” e “O Morro dos Vempos Uivantes”. Na Tupi, fui supervisor de “Meu Filho, Minha Vida” e escrevi minha primeira novela mesmo, “Somos Todos Irmãos”.
Leitor de sinopses - Comecei a minha carreira lendo sinopses de novelas estrangeiras para a (agência que tinha a conta da) Colgate-Palmolive. Eu que decidia se a novela ia ou não para o ar. Eu sei o trabalho que é, a responsabilidade que representa chegar para um autor e falar: “A sua novela não foi aprovada por isso, por isso e por isso”. Um cara para ser leitor de sinopses tem que ter cabeça para ajudar o autor a preencher um vazio que, às vezes, tem lá. E outra coisa: tem que fazer uma leitura correta da sinopse. Isso eu estendo ao diretor. O Luiz Fernando (acima, dirigindo Rodrigo Santoro), com quem eu já fiz tantas novelas, todas de grande sucesso, é um diretor que sabe ler a sinopse. Tem uma leitura perfeita. Eu escrevo, mando para o Luiz e esqueço.
“E Se Ele Voltar” - Eu me dou bem com todos os autores, só não me dou bem com o Silvio de Abreu. Jamais o tratei mal, ele também nunca me tratou mal. Mas eu não vejo nele condições para ler uma sinopse e decidir se a novela vai ou não para o ar. Minha encrenca com ele começou com uma novela chamada “E Se Ele Voltar”. É uma história que escrevi para as 18h, sobre dois estudantes de medicina, que têm sonhos. Um deles fala, brincando, em pegar o Santo Sudário, que tem o sangue de Cristo, e fazer o exame do DNA. A novela começa com esta brincadeira, e também cheia de amor e romance. Mas, de repente, eles já médicos, cirurgiões, encontram uma caixinha numa praia. Eu mostro o (médico nazista Josef) Mengele morrendo (em Bertioga) e mostro uma caiçara na praia, que encontra a caixa bem fechada, devolvida pelo mar. Quando estes médicos conseguem abrir esta caixa, eles encontram um pequeno pedaço do Santo Sudário. Ele consegue o DNA, acha que conseguiu o DNA de Cristo.
Sinopse rejeitada - O Schroder aprovou a sinopse, mas o Silvio de Abreu vetou. Eu quis saber por quê? “Ah, porque você mexe com nazismo''. Li uma nota no “Estado de S. Paulo” dizendo que ele falou isso. Aí eu falei: “Ele não leu a sinopse”. Não falo em nazismo, não levanto em momento algum questões sobre o nazismo, apenas falo do Mengele, digo que ele é um cientista que se utilizou dos campos de concentração para fazer experiências com seres humanos e veio morrer no Brasil. Eu posso tirar o Mengele da história. O importante é achar a caixa, com o Santo Sudário lá dentro. Aí eu falei: esse cara não pode ler sinopses. Não entendeu a sinopse.
Condição para “Velho Chico” - Na sequência, veio “Velho Chico” e eu falei para o Schroder: “Lamento muito. Não tenho nada contra o Silvio de Abreu, é um autor reconhecido na Globo, mas eu não quero que ele leia sinopse minha. E não quero que ele palpite na minha novela. Não quero que ele leia e que ele ponha a mão na novela.” E o Schroder, que já conhecia a história todinha, concordou plenamente. E avisou o Silvio de Abreu: “Na novela do Benedito não mexa. Nem música, nem texto, nem nada''. O Schroder foi muito leal comigo.
Como é a supervisão - O Bruno (Luperi) escreve e a Globo me manda a cópia dos capítulos. Tudo. Chega, eu imediatamente leio. Quando vejo que há alguma coisa que não está casando legal, ou quando a própria história me propõe outros momentos, que podem ser aproveitados, eu ligo para o Bruno, não na qualidade de avô, mas de supervisor mesmo. Eu falo: “Tem tal cena, Bruno, você podia fazer isso”. Eu também dito algumas cenas. Mas, na verdade, sem querer fazer elogio em causa própria, considero que a novela é dele. A sinopse e a história são minhas, mas a novela é dele.
A participação da filha Edmara - A Edmara escreveu os 20 primeiros capítulos. Eu fiquei junto com o Bruno lendo todos esses primeiros capítulos e revisando cada cena. Muitas cenas eu tive que revisar mesmo. Sugerir mudanças. “Vamos começar a novela bem!” A novela não estava no ar ainda. Mas eu também observei, nestes primeiros capítulos, a capacidade que o Bruno revelava de entendimento do que estava acontecendo e da proposta dramatúrgica que a gente tinha pela frente. Depois de 30 capítulos, eu deixei de fazer o trabalho que estava fazendo, de ficar junto com ele. E aí comecei a ficar na minha casa.
A saída de Edmara - Ela estava muito exausta, exaurida mesmo (na foto o autor entre as filhas Edilene e Edmara). Com problemas dela. Ela chegou à conclusão que estava brigando muito com a gente. “Poxa, pai, você fica cortando minhas cenas”. E discutindo muito com o Bruno também. E era muito sacrifício para ela também. Ela é avó recente. Dois netos. Um pequeno e está vindo outro. Tenho quatro filhos, dez netos e cinco bisnetos. Foi numa boa. Sem briga nem nada. Ela gostou. Ela também me ajudou na sinopse. Eu estava sob efeito do tratamento para me recuperar do AVC e ela escreveu muita coisa da sinopse. A história é minha. Conto para eles há anos e anos. Mas a sinopse é minha e dela.
O que mudou em “Velho Chico” - Nós demoramos para desenvolver a parte mais importante da história (o romance entre Santo e Tereza). Isso, talvez, em função do noviciado do meu neto, que ficou com medo de a história não suportar os 182 capítulos. Mas, na sequência, eu falei: vamos em frente. Tem que haver amor.
Crítica - Eu achei, nestes capítulos iniciais, que tinha um excesso de poesia, que não levava a lugar nenhum. Eu acho que a poesia cabe na novela, cabe em qualquer lugar. Adoro poesia. Sei tantas e tantas de cor e salteado. Mas na novela é perda de tempo você ficar duas ou três páginas de poesia e no final você ver: posso tirar que não faz falta nenhuma. Não tem nada…
Planos - Pretendo ainda encerrar a minha carreira, estou com 85 anos, fazendo mais uma novela, “O Último Beijo”.
Fonte: UOL